Hora literária – “Os Sermões”, de Padre Antônio Vieira

Veja uma análise das ideias, estilo e impacto de um dos maiores oradores do período barroco no Brasil colonial.

Na vastidão da literatura barroca brasileira, poucos nomes se destacam com tanta eloquência e impacto quanto o de Padre Antônio Vieira. Seus Sermões não são apenas discursos religiosos, mas verdadeiras obras-primas da oratória, que combinam fé, razão, crítica social e poder de convencimento.

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Nesta edição da Hora Literária, mergulharemos no universo retórico e reflexivo de Vieira, analisando a força de suas palavras e o contexto histórico em que foram proferidas. É hora de redescobrir um dos maiores intelectuais do século XVII e entender por que suas ideias ainda ecoam nos dias de hoje.

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O que diz “Os Sermões”, do Padre Antônio Vieira?

Padre Antônio Vieira escreveu três sermões específicos para a Quarta-feira de Cinzas. O primeiro, proferido em 1672, foi apresentado na Igreja de Santo Antônio dos Portugueses, em Roma. No ano seguinte, em 15 de fevereiro de 1673 — data que também marcava a trasladação de Santo Antônio; ele voltou a pregar na mesma igreja. Já o terceiro sermão, redigido para ser pronunciado na Capela Real, em Lisboa, acabou não sendo apresentado em razão de problemas de saúde do autor.

O tema da morte, central nessas pregações, não assume o tom sombrio ou aterrorizante que mais tarde caracterizaria a literatura gótica e o ultrarromantismo. Em vez disso, a abordagem de Vieira segue a tradição doutrinária da Igreja, alinhando-se ao espírito reflexivo da Quarta-feira de Cinzas, que convoca os fiéis à penitência e ao reforço dos compromissos cristãos.

Ao tratar da transitoriedade da existência e da inevitabilidade da morte, o autor recorre à noção teológica de que viver em Cristo implica morrer para o mundo. A partir dessa premissa, Vieira constrói um discurso sofisticado e engenhoso, capaz de surpreender o ouvinte ou leitor a cada argumento apresentado.

Aspectos gerais da obra analisada

Conhecidos também como “Sermões do pó”, os chamados “Sermões de Cinza” compartilham uma epígrafe comum, extraída da passagem bíblica de Gênesis 3:19, na qual Deus declara a Adão sua condição mortal: “És pó e ao pó tornarás”. Essa citação serve como base simbólica para os três sermões, que se organizam como um tríptico discursivo, apresentando continuidade e complementaridade tanto nos temas quanto nos argumentos desenvolvidos.

Os dois primeiros sermões mantêm uma relação mais próxima entre si, pois foram proferidos em Roma, em anos consecutivos, e reunidos no Tomo I da coletânea dos Sermões, ocupando posições estratégicas: o primeiro aparece logo após o famoso “Sermão da Sexagésima”, enquanto o segundo encerra o volume. Já o terceiro “Sermão de Cinza” apresenta características distintas. Ele foi incluído apenas no Tomo VI e indicado como destinado à Corte portuguesa. Embora sua data exata seja incerta, acredita-se que tenha sido composto entre 1676 e 1680, durante um dos períodos em que Vieira esteve em Portugal, após sua permanência em Roma e antes de retornar ao Brasil. A justificativa de que não foi pregado por motivo de doença pode, na verdade, ter sido uma forma diplomática de lidar com a recepção negativa que encontrou junto à Corte de D. Pedro.

Em essência, os três sermões giram em torno da temática da morte, estabelecendo uma reflexão sobre a condição humana por meio da distinção entre o pó que somos durante a vida e o pó em que nos tornaremos com a morte — abordagem que varia em estilo e profundidade ao longo de cada texto.

1º Sermão de Cinza

Exórdio: Vieira parte de Gênesis 3:19 — “lembra-te que és pó e ao pó hás de tornar” — para levantar uma reflexão: o homem não apenas foi e será pó, mas é pó no presente, o que transforma a afirmação bíblica em um enigma existencial.

Narração: argumenta-se que tudo que vive é transitório: o ser humano nunca é plenamente o que é, mas sempre o que foi e o que será. Diferente de Deus, que é imutável, o homem percorre um ciclo que começa e termina no pó. Essa condição cíclica é reforçada com episódios bíblicos, como a vara de Moisés que se transforma em serpente. Assim, Vieira conclui que a vida é apenas o caminho inevitável até a morte, e nossa inquietação interior revela essa consciência do retorno ao pó.

Divisão: o sermão é dividido em duas partes: o pó em movimento, que representa a vida, e o pó em repouso, que representa a morte. A partir disso, estabelece dois momentos a serem meditados: o pó levantado e o pó caído.

Confirmação:

  1. No primeiro momento, enfatiza-se a brevidade da vida e a vaidade dos desejos humanos.

  2. No segundo, discute-se a ressurreição: os mortos serão julgados conforme suas ações em vida. Embora aparentemente se dirija aos mortos, Vieira fala aos vivos, incentivando a conversão através de um apelo simbólico.

Peroração: finaliza com uma exortação direta: que se viva como mortais, conscientes da finitude, e se pense na outra vida como imortais.

Hora literária – "Os Sermões", de Padre Antônio Vieira (Foto: de Gianni Crestani por Pixabay).
Hora literária – “Os Sermões”, de Padre Antônio Vieira (Foto: de Gianni Crestani por Pixabay).

2º Sermão de Cinza

Exórdio: retomando o tema da origem terrena do homem, Vieira propõe uma saída espiritual: morrer antes de morrer, ou seja, renunciar ao pecado ainda em vida como forma de preparação para a morte verdadeira.

Narração: defende-se a ideia de que, se é certo que seremos pó por necessidade, é melhor escolher sê-lo por vontade. Exemplos de figuras como Sêneca, Davi e Santo Ambrósio são usados para mostrar que morrer espiritualmente – pela renúncia – é preferível a morrer em pecado.

Divisão e confirmação: a preparação para a morte envolve três considerações:

  1. Se a morte assusta por ser única, podemos nos preparar morrendo duas vezes (espiritualmente e fisicamente);

  2. Se assusta por ser incerta, antecipá-la espiritualmente a torna certa;

  3. Se assusta por ser rápida, esse preparo prolonga o tempo de reflexão.

Confutação: responde-se à objeção de que essa “morte antecipada” seria uma perda. Pelo contrário, Vieira argumenta que se trata de libertação, não renúncia dolorosa. Ainda assim, reconhece a dificuldade de abrir mão dos prazeres terrenos.

Peroração: encerra reiterando que morrer voluntariamente, ou seja, abdicar da vaidade e do pecado é o verdadeiro caminho para uma vida plena e pacífica, livre das angústias do mundo.

3º Sermão de Cinza

Exórdio: voltando ao versículo de Gênesis, Vieira lembra os dois sermões anteriores, mas adapta sua fala a um novo público. Propõe, de maneira provocativa, que deveríamos temer a vida e amar a morte, invertendo os sentimentos habituais.

Narração: com base em Salomão e na história da ressurreição de Lázaro, defende que a morte é alívio e liberdade, enquanto a vida é prisão e sofrimento. Refere-se também a culturas antigas que lamentavam nascimentos e celebravam mortes, como forma de ilustrar a sabedoria dessa inversão de afetos.

Confutação: antes de aprofundar o argumento, Vieira rebate possíveis objeções, mostrando que até os poderosos enfrentam os horrores da vida — doenças, perdas e instabilidades. Redefine a desobediência original como um castigo, onde não morrer foi a verdadeira penalidade.

Divisão e confirmação: divide a reflexão em três categorias de bens que a vida pode nos tirar:

  1. Bens da natureza — como a saúde e o corpo;

  2. Bens da fortuna — como a riqueza e a sorte, que são instáveis;

  3. Bens da graça — como a virtude, sempre ameaçada pelas tentações.
    Dessa forma, reforça a ideia de que a morte não oferece essas perdas, e por isso deve ser preferida à vida.

Peroração: o sermão termina com um tom mais sombrio, condizente com o momento pessoal do pregador. Reafirma que o amor à morte não é desejo de fim físico, mas adesão à renúncia, ao “morrer antes da morte”. É um chamado à reflexão sobre o destino do “pó levantado” enquanto ainda há tempo.

Mycarla Oliveira, especialista em língua portuguesa, no portal Pensar Cursos, também detalha sobre “De onde vieram os sotaques brasileiros mais populares no país?”, pois, mesmo que todos falemos português aqui, as variações de pronúncia, entonação e vocabulário entre as regiões forma

m um verdadeiro mosaico de sotaques que encantam, intrigam e, muitas vezes, revelam a origem de cada brasileiro.

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